O Salto de Fé
O Salto de Fé.
Olá leitores.
Esse fim de semana eu assisti várias lutas de judô já nas regras novas. Porque houve o Grand Slam de judô de Paris. Com tanta luta para assistir, nem deu tempo de jogar videogame, mesmo assim fiquei pensando em uma técnica do jogo Megaman X que no ocidente chamamos de "Salto de Fé". Vou contar como foi.
Sobre o primeiro dia de lutas em Paris.
Na sexta-feira eu achei que seria uma boa ideia ir me deitar antes das dez horas da noite. Porque eu queria acordar às quinze para as cinco e então assistir ao Grand Slam.
Demorei muito para pegar no sono, acordei às quatro horas da manhã e pensei que não valia a pena tentar dormir de novo, que era melhor ir para o computador. Conectei na judotv. Pelos meus cálculos era para estar faltando uma hora para as lutas começarem, mas o cronômetro no site ainda marcava duas horas restantes. Preferi ficar no computador fazendo outra coisa ao em vez de voltar a dormir. Quando a transmissão finalmente começou eles mostraram o local das lutas. Não era no local onde houveram os jogos olímpicos, que aconteceram no Campo de Marte, esse evento foi em um lugar chamado Accor. A diferença que eu me lembro é que nesse os tatames ficam na altura do chão, nos jogos olímpicos ficavam em um lugar bem alto, um palco. Dojôs são preferencialmente feitos na altura do chão para facilitar a retirada de feridos, tatames em palcos não são uma boa ideia. Eu sei disso pois pesquisei arquitetura de dojôs numa noite dessas.
Pesquisei coisas como: Porque tatames ficam na altura do chão? Porque no Japão dojôs são construídos com madeira? Porque no Nordeste não é viável construir um dojô de madeira? A resposta principal é que não dá certo por causa dos cupins mas tem outros motivos.
Mas então. Começou a transmissão e mostraram que não tinha ninguém nos tatames e o placar do local do evento marcava dez minutos para as lutas começarem. Esperei mais dez minutos. Quando as lutas finalmente começaram eu estava com muito sono! Mas Rafaela Silva ia lutar. Eu só lembro que ela ganhou, não lembro de mais nada. Não teve jeito, voltei a dormir depois de ter assistido apenas uma luta. Ir me deitar cedo definitivamente não deu certo.
Acordei novamente às sete e meia, justamente quando Rafaela Silva ia lutar de novo. A primeira luta que eu assisti dela foi um trinta e dois avos de final, (1/32). Essa segunda era às quartas de final, (1/4). Eu só me lembro que ela perdeu. Fiquei assistindo até às oito e meia quando vi outro brasileiro lutar e perder. Eu me lembro muito pouca coisa dessas primeiras lutas, mas não desista desse texto ainda, houveram lutas que eu consegui assistir com mais atenção. E por mais que não lembre muito de lutas específicas consegui perceber alguns efeitos das mudanças de regra que eu ainda vou explicar para vocês.
Depois de ver o brasileiro perdendo eu fui comer, é muito difícil entender lutas com fome. Depois de comer eu assisti o que deu até as últimas lutas de semifinal e repescagem transmitidas. Porque já expliquei em outros textos, são quatro lutas acontecendo ao mesmo tempo e você só consegue assistir uma de cada vez.
Depois do almoço fui assistir as finais, desta vez no Youtube. No judô como imagino que vocês saibam existem duas medalhas de bronze por categoria, e duas disputas de medalha de bronze. A Federação Internacional agora coloca as duas disputas de bronze para acontecer ao mesmo tempo, mas pelo menos as disputas de ouro acontecem uma de cada vez.
A principal lembrança do primeiro dia é que eu não conseguia diferenciar o ponto que voltou com a mudança de regras, o yuko, do ponto que já existia, wazari. Na luta em pé pareciam a mesma coisa. Na luta de solo ficou simples, cinco segundos de imobilização é yuko, dez segundos é wazari, vinte segundos é ippon que acaba a luta. Imobilização é quando a gente segura o adversário com a barriga para cima, com pelo menos um ombro no chão e segurando pelo menos um membro. De forma simplificada é isso, a regra completa tem mais detalhes mas é assim que eu grito para os novatos quando estou explicando na hora dos treinos.
— Segura a barriga dele pra cima!
— Prende um membro.
As nuances mais complexas são difíceis de explicar enquanto os colegas estão lutando.
Os samurai evitavam cair com a barriga para cima, eles evitavam cair de qualquer jeito, mas se fossem cair era preferencial cair com a barriga para baixo. Não há um consenso do motivo deles fazerem isso, talvez se devesse ao fato das armaduras serem mais resistentes nas costas. Quando Jigoro Kano estava treinando para a vida, derrubar o colega de qualquer jeito era ponto, mas ele criou um sistema de regras em que se buscava acertar o golpe perfeito, que ele ou alguém que treinava com ele chamou de ippon. Esse era apenas um conjunto de regras possível nos treinos de luta, os randori, mas ficou tão popular que hoje muita gente acredita que o judô se resume ao joguinho de derrubar o adversário com a barriga para cima, ou segurar no chão com a barriga para cima. Esse é nosso esporte, mas judô não é só um esporte, é muito mais, e nossos treinos não precisam se limitar ao treino para competição, podemos, ou pelo menos os faixa preta podem, treinar para o que quiserem.
Mas voltando ao joguinho do ippon, ou shiai, ou judô para você que acha que judô é só um esporte. No primeiro dia eu me sentia como um aluno que tinha passado o dia assistindo aula e não tinha aprendido nada. Fui dormir na hora que deu vontade, e acordei às sete e meia do domingo. Minha mãe tinha me mandado mensagem dizendo que tinha ido para a missa. Depois de dormir e acordar as coisas começaram a fazer sentido. Eu comecei a perceber a diferença entre yuko e wazari, e percebi características no jeito de lutar que não aconteciam ano passado. Mas depois eu conto mais sobre o segundo dia em Paris, preciso contar outras coisas que aconteceram no fim de semana.
Sobre minha campanha para lutar em Fortaleza dia 15 de Fevereiro.
Eu tenho contado sobre meu desejo de viajar para lutar em Fortaleza em minhas redes sociais, e neste sábado em particular recebi algumas ajudas. Suficientes para comprar a passagem só de ida, o que eu fiz. Minha mãe ao ser informada que eu tinha comprado a passagem de ida, sem dinheiro para comprar a de volta falou algo mais ou menos assim:
— Vai dizer que é porque tem fé! Tu tem fé coisa nem uma!
Engraçado que eu já tinha decidido chamar esse texto de ‘O Salto de Fé’ por vários motivos.
O Salto de Fé no Megaman X.
Megaman X é um jogo japonês, que eu jogo bastante, porque ele é focado em um conceito chamado uchikomi. Que é a busca do aperfeiçoamento através da repetição. Quando a minha professora pergunta.
— O que é uchikomi?
Meus colegas respondem.
— Aperfeiçoamento de técnica sensei!
Eu sou uma pessoa que há alguns anos decidiu que ia pensar em português, inglês e japonês e realmente faço isso. Vocês poderiam imaginar que isso facilita na hora de responder perguntas da professora de judô, só que na verdade dificulta muito!
O que é uchikomi? Uchikomi é uchikomi. Precisa traduzir? Mas se me forçarem a traduzir depois de muito pensar eu vou responder, golpe compenetrado.
A pessoa que decide pensar em mais de um idioma ao mesmo tempo acrescenta uma complexidade imensa à sua vida, mas também aumenta imensamente o significado de tudo. Japonês é a língua em que se descreve minimamente as coisas, o ouvinte que se vire para interpretar. Já português é uma língua onde a comunicação eficiente depende de descrições minuciosas.
Então a técnica do MegamanX que os japoneses chamam de ダッシュジャンプ (Dash Jump), que pode ser traduzido como salto com impulso, nós brasileiros chamamos de Salto de Fé.
Para o japonês a única informação pertinente é que você salta depois de apertar um botão para dar impulso. Para nós é preciso destacar que por vezes saltamos sem conseguir ver onde vamos pousar, uma informação que passamos com o uso da palavra fé, algo que os japoneses mal sabem o que significa. Mesmo os poucos cristãos que restaram depois das perseguições do período Edo vão ter dificuldade de entender e usar a palavra fé em seu dia a dia.
Então foi isso, eu dei um Salto de Fé, mesmo em um fim de semana que não tive tempo de jogar videogame, comprando uma passagem de ida, sem dinheiro para comprar a passagem de volta. Talvez minha mãe tenha razão, a minha fé aqui é só um conceito estratégico e não tenha um significado tão espiritual quanto ela gostaria que tivesse, mas foi isso.
Uma coisa que eu gostaria de acrescentar e que vai ser útil mais na frente no texto. É que pessoas que tem um pai japonês e uma mãe estrangeira, ou ao contrário, ao terem que lidar com o japonês e outra língua desde criança, tendem a ter uma forma de raciocinar muito diferente da minha. Eles com frequência não misturam as duas línguas e fazem um sarapatel que nem eu faço. É mais comum que eles desliguem uma língua para usar a outra e vice-versa. Aí com alguns surge uma situação triste. Como um mano que eu andei assistindo esses dias. Eu olho para ele falando e não reconheço um brasileiro, ele não sabe nada da cultura brasileira. E pelo pouco de cultura japonesa que eu conheço, percebo que os japoneses também não reconhecem ele como japonês. Ele tem dupla nacionalidade de direito, mas é um apátrida de fato.
Sobre o segundo dia de lutas em Paris.
Depois de dormir na hora que senti sono, sem me preocupar muito em dormir cedo e depois de acordar às sete e meia da manhã sem me forçar a acordar cedo demais, as lutas fluíram muito melhor. Comecei a perceber padrões. Os atletas com frequência estão buscando a imobilização, já na luta em pé, para cair no chão já imobilizando o adversário. O interessante é que a transição para o solo está saindo tão bem feita que muitas vezes já termina em ippon. Essa busca constante pela imobilização é claramente efeito da volta do yuko, e do fato que agora cinco segundos imobilizando já confere uma pontuação.
Como já disse antes comecei a diferenciar yuko, wazari e ippon no segundo dia, o que não estava claro antes.
O ponto alto desse fim de semana em Paris para mim foi a jornada de uma atleta chamada Ai Tsunoda. Como eu disse antes, eu pulei de cabeça na cultura japonesa de caso pensado, eu não sabia exatamente o que ia encontrar lá, mas fui. Não é o caso dos filhos de japoneses como Ai Tsunoda. Ela é filha de um japonês, com uma francesa que moravam na Espanha. As pessoas que gostam de dizer que a vida dos outros é mais fácil olham alguém como Tsunoda e dizem.
"Olha, ela sabe falar três idiomas desde pequenina, como a vida foi mais fácil para ela, queria eu saber três idiomas também".
É muita falta de noção pensar que a vida de uma criança dessas é fácil. Não que seja errado fazer elas terem contato com três línguas desde o começo, é o jeito, mas fácil não é. A chance da criança crescer um apátrida que não se reconhece como pertencendo a lugar nem um, é grande.
O que não é o caso da Tsunoda. O sobrenome é japonês mas a sigla no judô gi dela é ESP. Espanha. E ela é uma espanhola de direito e de fato! Foi uma luta linda. Contra uma japonesa muito forte. Os quatro minutos terminaram sem pontos e a luta passou para o desempate. Com quarenta segundos de luta, Tsunoda encaixou um seoi-otoshi e venceu! Gritou como uma legítima latina, hispânica, espanhola! Depois se lembrou de onde estava, da necessidade de manter a compostura na área de luta e se conteve. Nos barulhos, mas não se conteve no choro. Foi o momento máximo do evento! Me sinto um privilegiado de estar acompanhando essa área do conhecimento que o judô é, e em menor escala esse esporte maravilhoso!
O brasileiro Leonardo Gonçalves conquistou a medalha de prata em sua categoria.
Atualizando minha campanha para lutar dia 15 de fevereiro.
Recebi mais ajuda e agora além do dinheiro para anuidade e passagem de ida, também tenho dinheiro para passagem de volta. Só que a volta é mais complicada que a ida, porque os horários não foram confirmados pela federação, comprar a volta sem essa confirmação não seria um Salto de Fé, seria uma imprudência. Mas não deve demorar muito para sair. É só eles pegarem as regras do ano passado e mudarem o ano, não deve levar tanto tempo assim!
Ainda preciso conseguir o dinheiro da inscrição e da hospedagem. Esse evento é muito importante para mim, porque eu tive muita dificuldade para conseguir o atestado para lutar na categoria veterana e eu quero concluir essa jornada, participando da categoria veterana. Não que eu tenha desistido de lutar na categoria principal do judô, ainda pretendo lutar na sênior, só que demanda uma preparação muito maior. Preparação maior é comida! Estou com 89 quilos e não é o ideal, para lutar de forma segura eu precisaria estar com 92. Você pode estar pensando que só engordar três quilos é fácil, mas não é uma questão de adquirir três quilos de banha, eu preciso de três quilos de músculo e isso tem um grande custo. Mas estou adiantando capítulos, no momento o foco está em participar na veteranos e para isso minha forma está em dias.
Até.
Pix: diegosergioadv@gmail.com
Meu plano é ensinar sobre esporte e guerra através do xadrez e do judô.
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